Há dez anos atrás a inteligência artificial era algo ainda do campo da ficção científica. Hoje porém a IA já faz deepfakes com dois cliques do rato.

É então estamos pensar que provavelmente metade dos conteúdos introduzidos diariamente na internet são produzidos com uma mínima intervenção humana. O ChatGPT por exemplo na sua actual versão gratuita é capaz de mimetizar textos complexos como se tratassem de autores famosos graças a um par de frases curtas de comando. Assim estás linhas que agora escrevo seriam quase impossíveis de distinguir entre o que eu teclo ou o que um programa estatístico é capaz de debitar.

Estamos numa época de mudança. Atualmente a inteligência artificial está já desenvolvida o suficientemente para apresentar textos que dificilmente se distinguem dos textos escritos por um humano. E isso com o acesso a essas ferramentas de escrita de uma forma simples, acessível e já massificada através de serviços como o ChatGPT ou o Bard. 

Assusta-me por isso que talvez num futuro próximo a criatividade da escrita humana se possa reduzir a uma mera série de comandos de meia dúzia de palavras que serão o suficiente em teoria para reescrever uns novos Lusíadas em 15 segundos.  Será que o leitor notará qualquer diferença sobre a alma do autor? Talvez não. Porém creio que o perigo está na normalização da temática. No fundo neste momento a inteligência artificial se resume a compilar enormes quantidades de textos e estimar qual o texto mais apropriado para responder.

É preciso compreender que inteligências artificiais não estão de facto a criar. Quando muito estão a remixar temas e conceitos e não a buscar nada de novo. Estão a compilar os resultados de uma pesquisa, recorrendo a uma colossal memória de sequencias de palavras e apresentando-as de uma forma que o algoritmo estipulou.

Por isso não há nada de novo no horizonte. Há tão só uma poluição absurda, um débito obsceno de textos publicados, ou talvez melhor dizendo, vomitados na Internet por esses robots. Vi numa notícia que se estimava, se a memória não me engana que 90% dos textos publicados online no corrente ano não foram digitados ou ditados num computador, mas sim fabricados por intermédio de um destes robots.

Nada existira de sentimento nesta escrita, a poesia será por o derradeiro um fingimento literal baseado no nada e tão só de sequências estatísticas e probabilidades.  A alma da prosa inverosímil deixa de existir, passando a haver textos plastificados, uma espécie de literatura junk texts. Vamos provavelmente viver numa globalização artificial do pensamento, em que o algoritmo utilizado nas IA trouxe para a mediania toda a leitura e pensamento.  E eu qual dinossauro excelentíssimo, escrevendo palavras ao vento como um D. Quixote.

A vida está repleta por altos e baixos, de momentos de excitação ou apatia, de alegria ou tristeza e também por saúde ou doença. Na verdade, essa montanha russa que chamamos viver é uma inconstante viagem de boas e más emoções que se vão sucedendo. E tudo sem que consigamos compreender a normalidade desta inconstância.

Quando adoecemos ou envelhecemos ou a quando as vidas profissionais ou amorosas se desmoronam julgamos que isso tem algo de anormal. Mas muito pelo contrário, nada de existe de mais normal.

E é nestes baixos da vida, em que parece que nos foge o chão que pisamos que podemos realmente vencer. É aí que surge a oportunidade de ter alguma sabedoria e refletir sobre o que realmente importa na vida e como é normal ganhar ou também perder.

Podemos sentir-nos perdidos e desanimados, mas é imperioso lembrar que sempre há luz no fim do túnel (seja ele qual for). A luz pode sempre surgir na mais profunda escuridão, estar ao virar da esquina da dor e do desespero.

À medida que os anos e décadas passam, temos que lembrar que esta vida é bela e cheia de surpresas. Que por muito negro que esteja o céu haverá sempre um silver lining. Não importa o quão sombrio possa parecer o momento atual nunca devemos perder a no futuro. Há luz depois.

Então, encontremos a luminosidade em nossas vidas e compartilhemos essa luz com os outros. Afinal, a verdadeira felicidade está em dar amor e esperança para aqueles que nos rodeiam, sem pedir nada em troca. A verdadeira felicidade é dar e não ter. É a gratidão. É a partilha.

Não devemos desistir de encontrar essa claridade na nossa vida. Através de relacionamentos saudáveis e de experiências enriquecedoras há a verdadeira luz. E momentos de gratidão. Afinal, a vida é uma jornada, e a “luminosidade” está sempre ao nosso alcance.

Felicidade ou paz nós as construímos ou destruímos; aqui, o nosso livre-arbítrio supera a fatalidade do mundo físico e do mundo do proceder; toda a experiência que vamos tendo, mesmo parecendo negativa, a podemos transformar em positiva.”

Agostinho da Silva, Só Ajustamentos

Não creio que as festas de homenagem sejam necessárias. Contudo enquanto ouço um instrumental jazz entre calado com uma peça musical de música eletrónica a bombar, questiono-me se é ainda prazeroso escrever aqui. A resposta é – Sim! e volto a ter muita necessidade de escrever e deitar cá para fora os meus pensamentos.

É uma forma sadia de lidar com as contingências da vida e também de exercer a minha singela vontade de comentar e fazer considerações acerca da realidade.

Apesar de estar ausente nos tempos mais recentes, tenho como desculpa estar envolvido numa série de batalhas da vida que são bem mais importantes e consumidoras da capacidade de opinar.   Também e justamente porque me acho a fazer uma caminhada mais espiritual, tenho conseguido combater o meu Ego e feito com que episódios mais exuberantes do Ego tenham desaparecido.

A meditação tem me fornecido o caminho mais espiritual e roubado as cenas mais tempestuosas da minha existência.  Mesmo assim, terei que reeditar a promessa de voltar aqui mais vezes. Para meu bem, parabéns caro Psicótico.

Acabei recentemente de ouvir um delicioso audiolivro, um clássico disponível na librivox. Tratava-se de “Memórias póstumas de Brás Cubas” de Machado de Assis e fiquei maravilhado com o livro e pela história que retratava uma boa parte do século XIX brasileiro.

Nesta história, Brás Cubas, um aristocrata carioca, de fortuna de segunda geração que tem pretensões políticas e deixa-se envolver por uma filosofia denominada humanitismo.

Foi com muito prazer que segui a intriga do livro um romance de epóca, mas foi na descoberta desta pseudo-filosofia do humanitismo, que considero que Machado de Assis brilha, no seu poder de descrição do pensamento acerca do poder dos mais fortes que impera desde o séc XIX e está a chegar ao séc XXI.  Quando Machado de Assis escreve, ele tem ainda a noção da escravatura na pele e na cultura da época e da sua explicação mesmo nos meandros filantrópicos, que desculpabilizam a sua ignóbil existência.

Nesta caricatura feroz, onde o nosso herói e o principal autor e líder do humanistimo- Quincas Borba, as duas personagens inesquecíveis caem na loucura embevecidos pelas suas ideologias.

Nesta cultura, não muito distante da cultura portuguesa e até europeia, o livro descreve um cenário onde essa lei do mais forte impera e legitima a existência de colónias e o massacre dos indígenas. É puro humanistimo, mas que tristemente este repulsivo meio de enquadrar o mundo e a realidade, ultrapassa esta literatura e é pura realidade. Ficou visível na ascensão do fascismo passados 50 anos e por sua vez  seguida pelo Nazismo e o holocasto. Um culminar de desumanidade previsto nesta caricatura de filosofia.

Foi, portanto, uma pérola filosófica, onde o autor enquadra com cinismo um pensamento que imperava na época e que teve um desenlace que levou a duas guerras mundiais com epicentro na Europa.  O humanitismo é uma sátira do positivismo e de uma crença na superioridade e do nacionalismo que infelizmente hoje está novamente a crescer bem debaixo dos nossos narizes.

Até quando o ser humano, minimamente informado e letrado, pode acreditar nessa noção de superioridade pela cor da pele, ou pelo local de nascimento do seu BI, ou da religião que seguimos? Seremos tão ridículos que caiamos nestas armadilhas de sentimentos tão negativos pelo impulso do Ego?    Felizmente tenho a noção que tenho a consciência da irmandade humana, e creio que consegui incutir nos meus filhos a noção de empatia com todo o ser humano.  Sem isso, não creio que possamos ser seres humanos em todo a sua plenitude.

I am slowing down
As the years go by
I am sinking
So I trick myself
Like everybody else
The secrets I hide
Twist me inside
They make me weaker
So I trick myself
Like everybody else
I crouch in fear and wait
I’ll never feel again…
If only I could remember
Anything at all

Letra Robert Smith

Música The Cure

Estive internado no Verão. Nessa altura ofereceram-me um pequeno livro, daqueles clássicos intemporais como entretém para poder matar as horas na convalescença. O livro era A Morte de Ivan Ilitch de Liev Tolstói que eu imperdoavelmente nunca tinha lido.

Talvez não seria uma boa opção de leitura, para alguém que está doente, mas mesmo assim deixei-me a envolver nessa obra literária e na sua história de um dos maiores nomes da literatura russa. A história relata o desenlace inalterável da morte, que um burguês tem que suportar de uma forma particularmente estranha e quase assustadora. O pobre personagem principal é um moribundo, que sem saber que o é, vive num pesadelo onde a doença o vai dominando aos poucos até o cobrir num manto de morte.

Numa cama de hospital, lendo tal obra, não pude deixar de imaginar tal realidade, esse desconforto aterrador de lutar contra a inevitável morte, que tal como no livro, podia-se-ia estar a passar paredes meias comigo.  Alguém, perto de mim, poderia estar tal como a personagem principal do livro, a ter uma luta pela sobrevivência e contra a dor, sem qualquer sucesso como se fosse uma via sacra. Esse pensamento de ter um vizinho real, vivendo nessas circunstancias, foi-me muito ingrato e  de certo modo temporário muito desanimador.

Sempre vi os hospitais, como locais de esperança e de vida, não como zonas de desespero e morte. Eu salvei-me num hospital quando era adolescente, lutei pela vida e sobrevivi e dessa forma, encarei sempre os hospitais como locais de luta pela sobrevivência.

Com essa leitura não pude deixar de meditar, tal como me recordei da tradição budista, de se ter a lembrança que a morte é um evento que está presente ao virar da esquina. O Maranasati como meditação procura estabelecer um estado de espírito, em que se vive sabendo que a morte não é um evento eventual, mas uma certeza inescapável que acontecerá a qualquer altura, seja no próximo segundo ou daqui a cinquenta anos. E por isso esse viver é mais intenso e consciente, pois se interioriza como é passageira a nossa existência neste plano temporal.

E foi assim que um livro escrito à 135 anos, na sua actualidade me chamou a atenção que a vida não se deve viver em função de um propósito meramente consumista e vazio, mas sim repleta de propósito intrínseco. Serviu para algo a minha doença, no mínimo para me relembrar dessa maneira de ser tão importante.

Apercebi-me com alguma comoção que o terceiro calhau a contar do Sol completou 20 orbitas em redor do mesmo desde que comecei a escrever aqui . Vinte anos é um número redondo, talvez redondo demais para se deixar passar em branco.

Estava eu na grande cidade e recordo-me como alimentava desencantos, desejos e aspirações a milhares de eventos que nunca que se cumpririam e tive a necessidade de ter um elo que me ligasse aos meus amigos e colegas na minha cidade. Existia a necessidade egocêntrica de afirmar que eu ainda existo, de partilha de vivências e até algum exibicionismo. E foi nesse registo que embarquei na escrita do Diário de um meliante.

Confesso que batismo deste blog/díario não foi muito feliz, em primeiro lugar porque eu nunca padeci de psicoses e em segundo lugar porque de meliante tinha muito pouco. No enredo da época, onde a internet era um campo de anonimato e se vivia a liberdade digital que o 11 de Setembro desse ano veio por fim, talvez apimentar o titulo do blog me desse o distanciamento para aliviar algum pudor ou timidez na linguagem e pelo menos isso foi conseguido.

Vinte anos passados recordo com nostalgia aquela data, mesmo que fosse um período da minha vida, carregado de emoções fortes e desencantamentos de um jovem adulto. À luz do que sei hoje posso afirmar que todo aquele histerismo fazia parte dos conturbados anos que se seguiriam. Por isso me confesso: muitas das razões que me compeliram para escrever o Psicótico resultavam de uma enorme tempestade interna e incapacidade para gerir o que eu desejava e o que estava disposto a abdicar para obter o que queria, quer na carreira, quer ma vida amorosa. E não foi fácil, manter como um bom malabarista todas as bolas no ar, tentando manter todas as encruzilhadas do destino em aberto sem me comprometer com uma direção definitiva que só existia na minha mente histérica. Claro que as bolas acabariam por cair uma por uma mas felizmente mantive a minha sanidade a custo de algumas tristezas e desilusões.

Volvidos vinte anos encontro a satisfação de ter tido a sorte de ter atingido um dos principais trofeus a que me tinha proposto: a mulher pela qual eu era secretamente apaixonado e que eu desesperadamente tentava chamar a atenção (inclusivemente escrevendo aqui) está agora casada comigo. Talvez não haja maior vitória sobre o destino que o facto de ter deambulado e batido com a cabeça nas paredes, a minha vida amorosa é recompensada com uma medalha de ouro. A família que constituí é o meu mais precioso tesouro que tinha desejado há exatamente 20 anos e presumo que poucos podem afirmar o mesmo.

Mesmo que algumas personagens, apenas referidas pelas suas iniciais tenham sumido da minha lista de contactos, apraz-me dizer que a esmagadora maioria faz parte do meu cotidiano. Algumas estão perto do meu coração, espalhadas pelo mundo mas dando sempre o pulsar da amizade que só se vai desvanecer na campa. A vida me é assim suave, felizmente.

Mesmo que a minha vida profissional não seja um mar de rosas, e que não esteja nem perto do que tinha imaginado há vinte anos, não me posso queixar muito. Mesmo que eu tenha envelhecido há ainda alguns bons resquícios de juventude e a maturidade não tem estragado em demasia o meu espirito sonhador. Ao fim ao cabo tudo é transiente e estou feliz e em paz.

Parabéns Psicótico.

50. Que ninguém procure o defeito nos outros; que ninguém observe as omissões e acções dos outros. Mas observemos os nossos próprios actos.


Dhammapada Tradução portuguesa de Bhikkhu Dhammiko

Acho que quando me lancei num evoluir de carreira mal ponderado e troquei a minha cidade pela grande cidade há já dezanove anos necessitava de um suporte emocional para não me sentir só.  Eu trabalhava na área de ponta e prestes a colapsar da dot.com, numa prodigiosa e meteórica empresa, Nela conheci novas personagens longe da velha economia que estava a trabalhar antes e lá formei fortes amizades e até paixões. Patrões mais jovens que eu, crescimento exponencial, permanentes projetos de trabalho envolventes e satisfatórios, ausência de horários rígidos.  Mas naquela primavera tudo começara a desmoronar-se, tão rápido como tinha surgido e que agora tinha que deixar para trás. Foi assim que o serviço blogger me pareceu uma ideia viável para estar em contacto com os meus colegas de trabalho, relatando a minha pequena aventura.

Já que gostava de escrever sobre temas íntimos, aos poucos tornou-se um espaço intimista, porém descontrolado, um blog/diário/whatever que necessitava para descarregar alguma carga emocional e em simultâneo e em público e que mesmo com alguns soluços se mantém como um fóssil de pensamentos que vou revisitando. Parabéns psicótico.

3 . Pintando o arco-íris

Quando a porta permanecia fechada a sete chaves e os dias teimavam em se repetir em clausura, a vida continuava. Para minha grande surpresa, viver fechado podia não ser assim tão mau. Junto das almas que mais amo, não me faltava o que de verás é o mais precioso podemos possuir: amor.

Preocupando-me no entanto com as notícias calamitosas acerca do alastrar do bicho, com a economia e o ganha-pão do nosso lar não podia respirar paz. Às vezes à noite acordava sentindo-me preso num pequeno pesadelo que afinal era a realidade. Talvez o que me prendia mais o peito era a segurança dos meus pais e dos meus sogros que não víamos nesse período. We are all going to die someday. Era talvez a ideia recorrente que me trazia a insónia insidiosa daqueles dias.

Não foi fácil enquadrar todos os pensamentos que me corriam na cabeça, a forma descabida de estar desocupado. Felizmente nós humanos, muito embora sejamos animais de hábitos, somos também muito versáteis. Estava já em contacto diaria via telemóvel com os meus amigos mais chegados, numa forma, qui çá, de entreajuda de comunicação e desabafo à distancia – memes, longos diálogos. piadas e pornografia q.b. . Já que não conseguia correr do outro lado da porta, dei por mim a fazer um plano de crossfit caseiro bem austero para manter a forma física. Quanto à mente aumentei a dosagem da meditação e fui mergulhando aos poucos no fascinante muito espiritual budista, algo que me deu ferramentas concretas de combate mental pandemia. Em particular o budismo tailandês da tradição da floresta, ouvindo os ensinamentos da Ajahn Chan e Ajahn Brahm que começaram a ser regulares nos meus headphones enquanto fazia as tarefas domesticas.

Logo depois tive a incumbência de pela primeira vez me aventurar além portas, buscar viveres que não chegavam pelas entregas ao domicilio. Isso e ir comparar mascaras e desinfetantes, algo que hoje já faz parte do nosso novo normal, mas que na altura ou estavam esgotados ou eram vistos como aberrantes. Colocar o pé no corredor fora de casa e calçar-me tentando não tocar em nada, além de me deixar semi-aterrorizado era de facto estúpido. O Estado de Emergência estava prestes a ser decretado nessa altura e quando peguei no carro e ver as ruas ainda cheias de gente, desprotegidas e sem distancia social pareceu-me algo saído de um livro do Stephen King, mas com esteroides. No supermercado, já com muitas prateleiras vazias mas sem máscaras sentia um pavor que nunca tinha sentido antes. Ainda para mais a minha cidade liderava o top de casos positivos. Quanto regressei a casa, e me despi depois depois de me encharcar de álcool para de seguida tomar banho fiquei com a sensação que aquilo não era um estilo de vida decente e que ninguém podia viver assim muito tempo.

Enquanto as crianças pintavam arco-íris com as inscrições de vai ficar tudo bem, eu senti uma amalgama de emoções. Pensar positivo faz bem, mas a realidade não é escamoteável. Não deixariam de haver mortos, doentes, empregos perdidos, e todo uma parafernália de comportamentos diferentes. Mas colocar à janela esse desenhos coloridos dá um sentido de comunidade de que não enfrentamos sozinhos estes tempos diferentes, mas sim em pé de igualdade com todos. E fazer parte de um todo é sempre mais fácil, mesmo que a mensagem de esperança fosse enganadora.

2 . Quando se instalou o pânico

Logo quando me vi em quarentena senti uma estranha combinação de emoções.  Já as escolas fechavam e as incertezas eram muitas, que o que me preocupou inicialmente foi colocar em segurança os meus. Ao sentir que o isolamento era a única via eficaz de se estar seguro, no meio de tanta informação errónea e pavor difundido nos média apercebi-me que havia a necessidade de me acalmar. Estávamos seguros. Isto na eventualidade de já não estar contaminado. Sentia um misto de pânico e alívio: mergulhávamos numa grande incerteza mas ao mesmo tempo eu sabia que estava a tomar a atitude mais sensata.

Quando surgiu a primeira segunda-feira que não saí para trabalhar nem levar as crianças para escola, a minha mente baralhada não assumia um registo de vida doméstica voluntária nem de descontracção. Afligia-me com a óbvia incerteza dos próximos dias e semanas (sem imaginar que seria mais indicado contabilizar meses). Primeiramente o terror pelo medo de adoecer com o vírus ou de o já ter transmitido aos meus pais, à minha mulher ou aos meus filhos, depois com a possibilidade de colapso económico que se poderia abater.  E aqueles pequenos prazeres da vida que me são tão caros, como correr ao fim do dia teriam de ficar em suspenso: era algo que estava do lado errado da porta de casa.

A primeira semana foi talvez a mais complicada. A minha mente não se adaptava e não queria dar sinais de preocupação aos meus entes queridos. Sei hoje porém, que apesar de tudo, era apenas uma mera nova realidade que me custava a assimilar e a entender. Todo o ser humano teme a incerteza, por muito aventureiro e corajoso que seja o seu temperamento. A grande questão que se coloca prende-se de como o encaramos. Se é algo que não podemos controlar isso motiva dentro de nós um turbilhão de pensamentos, expectativas e ansiedades que nos consomem.

Há mais de dois anos numa altura de bastante desassossego interno decidi tentar meditar. Eu pensei que fosse uma boa forma de apaziguar a mente, combater as depressões sazonais e diminuir o stress. Para meu espanto, a tarefa revelou-se bem mais difícil do que tinha imaginado. Meditar em si, não é muito fácil – estar quieto, a sós com a nossa mente liberta o tal cérebro primata que se recusa a serenar ou a obedecer a vontades. Mas com o hábito e com algumas meditações guiadas, a prática começa a dar alguns frutos. Agora que medito regularmente desde então, fiz-me valer desse caminho para encontrar alguma paz em tempos de pandemia. Nos primeiros dias, apesar de estar bem capaz de meditar profundamente a minha mente lutava na sua ansiedade em se tornar calma. Parecia de novo um noviço, que fechava os olhos e não sentia a calma que advém de quem segue o caminho meditativo.

Saber que um vírus, um pedaço de sequências genéticas, um parasita microscópico sem vida, fez parar o mundo tal como o conhecemos é como que absurdo. Mas de facto aquele ser minúsculo  abalou os alicerces das nossas convicções sociais, fez vacilar políticas e arrasou economias. Como algo tão pequeno e basicamente invisível provocou tal alvoroço fez-me pensar e também meditar numa questão que para mim é cada vez mais importante entender: tudo nesta vida é transitório. Mesmo as coisas que temos como dados adquiridos e imutáveis são de facto passageiras.  De repente a ideia de que coisas tão simples do nosso quotidiano tais como viajar, abraçar a família e os amigos, ir a um restaurante, ir a uma loja tornaram-se actividades perigosas e em breve proibidas. Tudo que considerávamos como as bases da nossa liberdade individual, da nossa sociedade de consumo em tempos de paz, não passavam afinal de actos meramente efémeros, sujeitos a imprevisíveis condicionantes do destino. A solução seria deixar ir… Ou algo assim, se é que o destino existe…

As notícias anunciavam um número crescente de mortos e unidades de cuidados intensivos começaram a encher-se. Em Itália o descalabro fazia-se sentir e em Espanha a hecatombe iniciava-se. As certezas eram poucas e obviamente aquela história de lavar bem as mãos não era o suficiente. Os sites de entrega de mercearias e supermercados online simplesmente deixaram de funcionar, tal era a procura, ou na melhor das hipóteses só fariam entregas para dali a umas duas ou três semanas, o que, dadas as circunstâncias, mais pareciam as calendas gregas. E assim foram aqueles primeiros dias de confinamento.

1 . Quando nada o faria prever

Logo no início de Janeiro senti que algo diferente e assustador se estava a formar, quando começaram a surgir notícias de um vírus na China. Mas longe de os meus pensamentos mais dantescos, iria supor que a realidade que daí surgiu fosse o que se acabou por derrubar sobre nós.

Talvez agora seja fácil de o dizer, mas quando lí as primeiras noticias que um novo vírus tipo SARS‌ estava a grassar numa cidade chinesa, (que nunca tinha ouvido falar) que tinha dez milhões de habitantes, senti logo um calafrio na espinha. Isto porque talvez me fizesse lembrar um desses enredos apocalípticos de ficção científica ou de livros de terror catastróficos. Foi de forma algo alarmista e hipocondríaca que repassei o meu temor à minha cara metade, e perante a ideia de começar a encher a dispensa de conservas, o que teve uma resposta muito reprovadora e porventura mais lógica. Eu de certeza estava a ver filmes e séries a mais…

Agora que a primeira vaga está a dar mostras de terminar, reconheço que o medo e o pânico que grassaram ao longo destes três meses foram feitos como numa história de Stefen King, com o terror irracional e inconsistente a estender-se passo-a-passo. Muitas vertentes deste medo eram inconcebíveis, impossíveis de serem previstas. O que ao princípio parecia apenas algo que acontece lá longe, foi-se aproximando aos poucos. Como um cancro foi envolvendo tudo e tornando-se inexoravelmente uma realidade. Um pesadelo que tinha saído de um conto de terror e que agora nos tinha engolido.

Foi logo a meio de março, nesse já longínquo março que me vi forçado a ficar em casa, numa quarentena voluntária uma vez que tinha estado em contacto com um dos primeiros casos conhecidos. O monstro veio bater à porta, sorrateiro nos últimos dias em que se poderia fazer um jantar, neste caso com os gimbras e Ma. P. , gente da velha guarda que gosta de conversa. Inocentemente uma semana depois, quando os alarmes começaram a tocar e as escolas a hesitarem no fecho, Ma. telefona-me sério que o seu rebento tinha dado positivo e que a quarentena voluntária seria uma boa ideia.

Na altura não entendi a profunda mudança que aquela notícia trazia, qual arauto numa tragédia grega enquanto o coro gritava de espanto. Depois quando se vislumbrou o estrago, percebi que a porta de minha casa tinha ganhado um novo peso e que se tinha fechado com uma enorme tranca. E‌ assim começou o meu longo confinamento e uma nova e estranhamente agridoce prisão.

The end of the earth is upon us.

Pretty soon it’ll all turn to dust.

So get up. Forget the past.

Go outside and have a blast.

Go a thousand miles in a jet airplane.

Go out of your mind go insane.

To a place you never been before.

Eat ice cream our you’ll lick the floor.

‘Cause, the end of the earth is upon us.

Pretty soon it’ll all turn to dust.

Goodbye my friends.

Goodbye world.

I’ll see you in the next life

letra de Ithaka


“If you’re going to try, go all the way.
Otherwise, don’t even start.
This could mean losing girlfriends, wives, relatives and maybe even your mind.
It could mean not eating for three or four days.
It could mean freezing on a park bench.
It could mean jail.
It could mean derision.
It could mean mockery — isolation.
Isolation is the gift.
All the others are a test of your endurance, of how much you really want to do it.
And, you’ll do it, despite rejection and the worst odds.
And it will be better than anything else you can imagine.
If you’re going to try, go all the way.
There is no other feeling like that.
You will be alone with the gods, and the nights will flame with fire.
You will ride life straight to perfect laughter.
It’s the only good fight there is.”

Charles Bukowski