2007

Sem vergonha e paciência para fazer sumários descritivos, mas com recordações que não gosto de deixar ficar em branco nas minhas vadiagens, deixo para fins de um cadastro algumas impressões fugidias.

Para ser muito honesto a minha vida regula-se agora por novos nortes e interrompi uma cadeia de vícios e de deambulações que se tornam desirmanadas com o meu novo estilo de vida, mais caseiro, mais consciente, mas sem se tornar desinteressante. Apenas mudou o seu ofício, num upgrade há muito desejado.

Para além da parceria divina, conto com um gosto exacerbado pelo hobbie fotográfico, que aos poucos vou aprimorando, muito embora reconheça a minha falta de talento crónica. Mas o gozo é tanto que vou treinando, qual nipónico pronto a flashar tudo em seu redor.

A regularidade das minhas visitas às salas de cinemas aumentou significativamente. Posso dizer que a minha veia de cinéfilo tem estado repleta de guloseimas, e pior parece que a cada dia descubro novos serões caseiros onde dvds me enchem a retina e os tímpanos com obras de arte da sétima arte. Alguns oscarcizados pareceram-me realmente bons. Mas nos clássicos dos mestres é onde me refúgio cada vez mais.

Viajamos em diversas escapadinhas, tipo vá para fora cá dentro e afins. O Douro, a Raia e a minha praia mostram-se cada vez mais territórios meus, zonas de escape da podridão urbana e da rotina.

Marcou-me particularmente uma despedida há muito anunciada. O ritual fúnebre mostrou-se sinistro e funesto, não por acarretar o luto, mas sim por exasperar no ridículo a dor honesta, como se fosse um acontecimento social a que não podemos fugir, com o precioso bónus de inúmeros familiares vindos directamente da quinta dimensão. Coisa para nos fazer duvidar da genética. Mas em suma a morte é per si estranha, mas simultaneamente natural. E isso eu não esqueço.

Podemos muitas vezes esquecer-nos de como a vida é um conjunto emaranhado de momentos. Momentos sem consonância se os enquadrarmos isoladamente, se os remexermos apenas cronologicamente na nossa memória.

Por vezes dou-me conta de que situações aparentemente despropositadas acabam por se tornar peças de um grande puzzle, que isoladamente nada representam a não ser um quebra-cabeças. Mas se tivermos a boa-ventura de sobreviver muitos obstáculos afinal estamos apenas perante mais uma peça da engrenagem que vai funcionar perfeitamente no fim.

Tenho vivido muito quebra-cabeças cujas soluções só se encontram quando chegou a vez de serem solucionadas, e é importante relembrar-me que o puzzle que é a vida é um conjunto de peças que se têm que juntar. Mais tarde ou mais cedo.

Era tempo de sentir
Esse rescaldo de paixão
Num amor audaz e pleno
Cabal de fé e certeza
Fico sereno a sorrir

Abre-se o céu e o sentimento
Não chora mais o meu coração
Limpo-me do veneno
Passado de uma alma mártir
Bruscamente feliz

Sinto esse afecto
Dentro da contemplação
Esse Amor eterno.
Deixam-se as flores
As pétalas caem

E pergunto:
Feliz és minha?

Se você disser que eu desafino, amor
Saiba que isso em mim provoca imensa dor
Só privilegiados tem ouvido igual ao seu
Eu possuo apenas o que Deus me deu
Se você insiste em classificar
Meu comportamento de antimusical
Eu, mesmo mentindo devo argumentar
Que isso é bossa nova, que isso é muito natural
O que você não sabe, nem sequer pressente
É que os desafinados também tem coração

Fotografei você na minha Rolleiflex
Revelou-se a sua enorme ingratidão
Só não poderá falar assim do meu amor
Este é o maior que você pode encontrar, viu!
Você com a sua música esqueceu o principal
Que no peito dos desafinados,
No fundo do peito, bate calado…
No peito dos desafinados
Também bate um coração!

Desta memória eu quereria dizer…
Tão apagada agora… quase nada resta
porque ficou tão longe, nos meus anos primeiros de ser homem.
Uma pele como de jasmim… Na noite

de Agosto… Era de Agosto?…
Mal relembroos seus olhos…
Eram, suponho, azuis…
Ah sim, azuis. Azuis como safira.

Quem se questiona, quem tem a capacidade de imiscuir-se no seu próprio mundo interno dos porquês existenciais tem tendência para se perder num labirinto metafísico que escapa a capacidade da mente humana.
Nunca se encontraram certezas ou axiomas acerca do que nos define ou qual o nosso trajecto na vida.Buscando as razões, ou se preferirem o sentido da vida, esquecemo-nos das sua essência.
Porém há algo que devemos entender, ou pelo menos tentar entender:não estamos aqui por mero acaso. Isso seria muito redutor…

Voltei até à grande capital medieval – era um projecto que eu acalentava à muito, não só porque eu falhara o seu ex-lí­bris como também uma bebida fumegante me ficara no imaginá¡rio, entre muitas outras actividades lúdicas.

Mas o essencial e que eu estava munido de duas estrelas polares da minha vida, que me iriam guiar com certeza a momentos únicos. Catedral de SantiagoE assim foi. Com sofrimentos de frio, peripécias de devaneios temporá¡rios, com barriga cheia e bem regada, muitos quilómetros muitos momentos de calor. Mas a cereja foi mesmo ir até à antecãmara onde o relicário se encontra. Foi comovente não pelas relí­quias em si, mas sim pela ideia de me encontrar no âmago do alvo incontáveis peregrinações ao longo de séculos, algo que gerou tanta fã, exigiu tantos sacrifí­cios e de certa forma tocou tantas vidas. E só pude presencialmente ver o cubí­culo que gera tanto atracção. Solene posso afirmar que me impressionou. Gostei daquele frio galego e faço questão de repetir se faz favor.

Agora tenho uma constante sensação que estou a ter um daqueles sonhos em que tudo parece maravilhoso. Os cenários são Technicolor, a música lounge, as pessoas encarnam sabedoria. Tudo se completa em harmonia.

Muitas regalias, mordomias, encantos e festas tiveram e vivi nos últimos meses. Tantos episódios que ficaram por relatar e que mereciam fazer parte das memórias escritas. Por isso início uma pequena série não cronológica e muito imprecisa de memórias mais ou menos esbatidas do trimestre. Alguns momentos foram obviamente censurados por pudor.

Compras natalícias, micro férias e até momentos de deleite, tudo foi tão diferente neste solstício. Foi mais fraterno e alegre e se não fossem os desgostos familiares tudo teria sido como que perfeito. Contudo a doença e a velhice não escolhem época para revelarem os seus inexoráveis pesos de chumbo. Mas na pesagem que temos que fazer a cada instante da nossa vida pude ver um equilíbrio, um balanço no cômputo de vivências… Desde a alegria de dar e partilhar algo com alguém importante, ao conhecer e sentir-se bem-vindo no seio de outras consoadas, houve realmente um cheiro genuíno a Natal como já não conhecia desde criança. E é disso que eu me quero recordar.

É importante perceber o decurso e a cronologia da vida. Nada como uma série de novos nascimentos, para me lembrar a forma como o tempo passa cada vez mais célere. Faz uns bons anos e relatava com prazer o sucesso a ferros do aparecimento do primeiro rebento do inspector P. e eis que um segundo rebento, desta vez varão começa a sua existência. Além dos nascimentos recebi uma grande perda, verdadeiramente irreparável. Há muito que estava anunciada, mas nunca se interioriza a perca de uma presença constante de três décadas. Fica a saudade e a frase feita de que a vida é assim.

Fico a pensar que aconteceu entretanto, e de facto tanto sucedeu e eu pouco apresento para contar, além de umas quantas medalhas de lata ao peito… E com certeza tempo de trabalhar para a medalha de valor…

Estava eu no sossego de uma convalescença dessas gripes invernais, só com a companhia do meu peluche e de um bom livro, quando me dei conta que não escrevo há séculos. Só num espaço sem estar ligado à rede, onde só faltava a lareira para sentir que me encontrava há cinquenta anos atrás é que me deu uma vontade enorme de escrever. Era como se a impossibilidade de termos um bem, aumente o seu desejo, e isso fez me sentir algo estúpido. Ter desperdiçado inúmeras ocasiões para fazer o gostinho à caneta por causa da preguiça e o corre-corre diário e rotineiro: isso são sempre desculpas esfarrapadas.

Ao sentir o vento a uivar lá fora e o meu nariz a teimar escorrer mucos irritantes, deixei-me levar em meditações febris, que embora fossem algo desconexas eram contudo de uma lucidez alarmante : dei-me conta que estou a chegar à idade de não retorno.

Algures um relógio biológico indica-me que o meu leque de opções encontra-se cada vez mais com menos horizontes, menos cenários, menos enquadramentos. Mas isso não é obrigatoriamente mau, muito pelo contrário, permite que nos foquemos mais no essencial e não no acessório no que toca ao que buscamos da vida. E no meu caso posso dizer que a opção que tenho pela frente é das mais risonhas que alguma vez vislumbrei.

Ano Novo, vida nova é um cliché que gosto de acarinhar, muito pela piada de sentir que devemos sempre almejar que as nossas vidas não se tornem numa rotina sem sabor e sem espírito.

Não creio que a mudança de calendário per si estabelecia um novo ciclo na nossa existência, mas sim na nossa percepção de que desejamos algo de diferente à medida que tradicionalmente se engolem passas ao ritmo das badaladas do Ano Novo. Devo contudo dizer que apesar de não querer fazer balanços sei que as passas de 2006 foram indubitavelmente doces, muito para lá do que eu poderia esperar.
Os lucros brutos excederam em larga parte as expectativas e o resultado líquido depois do apuramento do imposto mostra claramente que a empresa bateu um recorde.

Mas negócios aparte, descobri um tesouro inigualável: um novo projecto de vida que está cada vez mais a dar frutos, uma forma de estar na vida mais serena, mais consciente e acima de tudo mais feliz.